Começou com o estômago tendo algumas contrações que, ao longo de uma hora, foram se intensificando, a dor se assemelhava a milhares de mordidas de tigres siberianos e um movimento de sucção enorme na sua barriga que se contorcia, parecia um rosto triste chorando, berrando, lamentando que não houvessem estrelas o suficiente para encher o céu, fazer do céu um clarão prateado de cegar olhos fechados e de derreter cílios de cera. Grace se sentava numa cadeira bem barroca com uns lacinhos ao redor dos braços, seu cabelo era todo arrepiado, verde. A sala era a de um apartamento ordinário de subúrbio, paredes com infiltração, fiação elétrica e todo tipo de desgraça semelhante. Sua avó morou ali por mais de três séculos até se enjoar da pobreza do lugar, da sua vida, do tempo e dos gatinhos que andavam pelo teto - a maior parte de sua vida, passou tentando oferecer chá de água salgada e biscoitinhos de ventilador a eles, com muita frustração, é claro. Na rua, um cachorrinho se deitava no pretzel gigante que tampava a entrada dos esgotos, um vento doentio e quente abafava sua existência.
A cadeira, o assento afundava, lentamente, e seu vestido de longas listras pretas e brancas se estendia pela sala, crescia, tomava as paredes, se fundia a elas, cobria os gatinhos, miando alto. Desesperados, eles, primeiro, tentaram arranhar o tecido e se livrar dele, mas perceberam que não estavam obtendo sucesso e, ao passo que o medo aumentava, começaram todos a se atacarem, se rasgarem, enfim, até morrerem. Uma cachoeira de sangue roxo brotava do teto, sujava o vestido. A cadeira a engolia devagar; Grace cantava óperas diferentes ao mesmo tempo, com trinta vozes unidas em uma nota, a escuridão azul a absorvia, era onipresente.
O seu problema
É que você nunca se importou
Com o tarot da sua avó
Toma, vai, um pouquinho desse sorvete
Os olhos daquele mulher eram faróis enormes, seus óculos de amor também. A sorveteria em que elas estavam era ordinária, tudo era ordinário, um papel de parede azul em tom pastel, gente com cara de tédio, lugar pequininho. Seus lisos cabelos castanhos eram enormes também, ela era alta, muito alta, usava calças de algodão enormes também, três vezes maiores que suas pernas enormes de vários metros de comprimento. A gola da sua camisa era igualmente enorme, chegava até a sua boca, impedindo Grace mesmo de tomar o seu sorvete em paz. Estava óbvio que aquela mesa não era para duas.
Você nunca teve vergonha
Grace, você nunca nem foi à praia
Sempre estava naquele balão lá
E aquelas mil bocas te beijando
Ó, Grace, que diversão mais piegas
Sorte de Grace, havia uma revista enorme encima da mesa (tudo daquela mulher era enorme), deveria pesar uns cinco quilos. Pegou a revista e matou uma mosca que queria entrar em seu ouvido. Levantou-se da sua cadeira de sobressalto, e fez tanto barulho que despertou todos os funcionários e clientes da sorveteria, todos numa espécie de transe narcótico e sexual. A mulher também se sobressaltou com a ousadia, o seu sorvete escorria pelos cantos da boca. Grace subiu na mesa e usou uma das mãos para se apoiar na parede e a outra para segurar aquela revista... enorme... Como gostava de cantar, proferiu mil óperas antes de dizer, numa fina voz, soprano que era, e, encenando seu drama pessoal
Não me insulte
Filha de Morfeu
Você não é ninguém
Roubo miserável

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