sábado, 18 de dezembro de 2010

O Tempo no Tempo

o bolo estava passando do ponto, e a receita dele estava toda errada - pouca farinha de trigo, muito fermento, massa mal feita. Bete não sabia mesmo cozinhar, não estava no seu sangue, nem na sua disposição ou na sua agenda. Pegou um paninho de prato azul, com umas cerejas adornando, e tirou o bolo do forno e o colocou na mesa, que havia ganhado da mãe já faz uns vários anos. Mirou ele. Daquele ângulo, o lado direito havia solado, e o recheio de chocolate estava todo à mostra. A parte esquerda mal tinha assado e o cheiro, a imagem e, principalmente, o gosto daquilo a afastava, cada vez mais, do que um dia ela ainda pode chamar de bolo. Decidiu que o destino mais merecido a ele era o lixo. Foi lá que Bete o atirou, com desgosto de si mesma. Nada a poderia deixar mais desgostosa de si do que a falta de talento para as coisas que gostava.
para Bete, ser boa leitora não significava ser boa escritora. Ser boa degustadora não significava ser boa cozinheira. Ser boa babá não significava ser boa mãe. E, assim por diante, uma série de pequenas frustrações, ela administrava com muito cuidado para não se machucar, para não entrar em colapso.
Ela regava as plantinhas do seu pequeno jardim, na varanda do seu apartamento, e, ainda bem, Bete se sentia util por manter algumas coisas vivas, as suas flores. Os seus girassois, pertos de um canto da parede que conservava algum limo. Nunca entendeu porque ele se instalara logo ali. Nunca iria se acostumar com a umidade, sempre viveu na secura, na falta. Viver na abundância é difícil.
Bete ia tomar banho agora, deslizava pelo piso azulado, parecia que azulejo forrava todo o chão do apartamento dela, dançava ao som de uma música que o vizinho tocava alto encima, como ela não tinha vitrola, ele era, basicamente, seu suporte musical diário - e tinha dado sorte. Era uma dos Mutantes, não sabia qual, mas sabia do que se tratava. Algum dia invadiria a casa do vizinho, um cara de, mais ou menos, uns quase trinte anos, cabelinhos cacheados, castanhos meio dourados, a pele também queimadinha de sol, porque ele trabalhava no centro, e andava o dia todo pra lá e pra cá, Angela que tinha contado. Ela invadiria a casa do vizinho e dançaria com ele por algumas horas, Bete era exagerada, e faria um bolo para ele. Não ficaria triste se desse errado.
entrou no chuveiro, fechou a cortina de plástico e permitiu que a água viesse e a absolvesse de todas as suas injúrias. Elétrica.

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